Mestres Julião Rams e Raimundo Ladislau
O Marabaixo atualmente é a
maior expressão cultural do nosso Estado, e em especial de nossa cidade de
Macapá. Hoje temos até mesmo o Dia do Marabaixo, em homenagem às nossas
comunidades afro que sempre estiveram presentes nos momentos mais importantes
de nossos intercursos históricos. Mesmo assim, os marabaixeiros tiveram vários
problemas de identidade, tanto em relação ao Estado, que queriam restaurar a sua
dominação política, como a própria Igreja Católica, que via, nas manifestações,
uma ameaça aos cultos cristãos e à vida social da população como um todo.
Raimundo Ladislau e Julião Thomaz Ramos – ou Julião
Ramos, foram grandes pilares do nosso Marabaixo. Mestre Julião nasceu em Macapá
em 1890, e se tornou líder da comunidade negra e representante do Marabaixo.
Era casado com Januária Simplício Ramos da comunidade do Curiáu, e teve seis
filhos: Felícia Amália Ramos, Alípio de Assunção Ramos, Apolinário Libório
Ramos, Benedita Guilhermina Ramos e Joaquim Miguel Ramos, Benedita Guilhermina
Ramos, a Tia Biló.
A iniciativa de mudar parte
da população para o Laguinho, tinha interesses bifurcados: por uma lado
representava as melhorias urbanas na frente da cidade e o crescimento urbano em
outros lados. Por causa do movimento politico organizado, o traslado da
população negra da orla de Macapá aconteceu de forma “pacífica”, pois Janary
conseguiu convencer Julião Ramos a ser seu aliado nesse empreendimento. Esse
remanejamento inspirou até mesmo no que se tornou o hino popular do Marabaixo,
pela lavra de Mestre Ladislau: “Pra onde tu vai, rapaz”.
No geral, o Laguinho era uma área com
muita roça, e um lago
onde as mulheres lavavam as roupas. Por isso,
grande parte da população negra decidiu se transferir para este lugar, mesmo
que este fosse um espaço sem infraestrutura urbana para recebê-los. Outra parte
resolveu seguir Gertrudes Gaia, que resolveu se fixar “nos campos da Favela”,
originando o outro grupo de Marabaixo que inicialmente foi adversário, mas aos
poucos foi contornado, servindo, durante o Ciclo, de complementação, com a
união das duas bandeiras: do Espirito Santo e da Santíssima Trindade.
Se
no inicio os moradores do Laguinho se
viram excluídos dos benefícios de urbanização do Amapá Território, nos dias
atuais o bairro do Laguinho é considerado um bairro com posição privilegiada,
por estar próximo do centro da cidade, além de ser um território negro com
expressivas manifestações culturais de matriz africana.
Mas relação do Marabaixo do
Laguinho com o Estado durante o governo
Janary não se resume apenas nas negociações
com o mestre Julião para o remanejamento. Outras ações foram efetuadas ou
propostas pelo governador com o objetivo de atrair essa comunidade. A relação
entre cultura e Estado tem despertado o interesse de pesquisadores para investigação
e interpretação. Os estudos históricos sobre esta relação visam elucidar as
ações do Estado sobre as manifestações, tradições, e saberes populares, e as
implicações dessas
intervenções.
Assim, na administração de
Janary Nunes as festas tradicionais da cidade, como o Marabaixo, passaram a
integrar o calendário cívico do governo. A valorização da cultura local pelo
poder publico, principalmente das festas religiosas, era um caminho de aproximação da
população amapaense.
Em sua viagem a Macapá na
década de 1950, o sanfoneiro Luiz Gonzaga esteve no bairro do Laguinho e
assistiu a uma apresentação de Marabaixo. Neste período, Luiz Gonzaga ganhou
destaque nacional com o estilo regional nordestino conhecido como o “baião”. Um
fator favorável ao futuro proeminente de Gonzaga foi o incentivo do Estado e o
apoio dos intelectuais do país, pois sua música era representativa para a
nacionalização da música brasileira. Com isso, o cantor passou a fazer parte da
Rádio Nacional, que era um instrumento vital do Estado Novo getulista para integração
nacional, pois tinha o papel de irradiar as músicas regionais para todo o
Brasil.
Com esse destaque nacional,
Luiz Gonzaga gravou o ladrão de Marabaixo ‘Aonde tu vai rapaz’, conhecida por
ele durante a sua visita ao bairro do Laguinho, e compôs, juntamente com o
advogado Humberto Teixeira, a música chamada ‘Macapá’, em homenagem ao capitão
Janary Nunes, que foi lançada na Rádio Nacional.
Julião Ramos e esposa sendo entrevistados por Nunes Pereira
Outra ação do governo territorial destinada ao
Marabaixo foi o apoio para o lançamento do livro de Nunes Pereira ‘O Sahiré e o
Marabaixo’, publicado em 1951. Nunes Pereira era etnólogo e viajou pela
Amazônia por quase 40 anos. Com o apoio do governo territorial, o livro foi
lançado com o objetivo de criar um auditório para exibir e conservar a dança do
Marabaixo e do Sahiré. Mas este objetivo não foi alcançado. Entretanto, vale
destacar que este foi um trabalho de
grande contribuição para o conhecimento das manifestações culturais do Amapá, pois,
além de ter sido um trabalho pioneiro, trouxe impressões acerca do Marabaixo e
Sahiré no final da década de 40 que ajudam os trabalhos de pesquisadores da
cultura local.
Percebe-se nesse período, que a
proximidade entre Janary Nunes e Julião Ramos além de ajudar no remanejamento
das famílias do centro histórico de Macapá, trouxe mais visibilidade para o
Marabaixo do Laguinho, mas essa visão atual foi resultado de várias outras,
prós e contra, porque o que estava em jogo era a desvalorização do povo negro,
e o necessário remanejamento deles da frente da cidade. Certos estudiosos da
cultura negra no Amapá chegam a se perguntar: E se a população da orla fosse
totalmente branca, o tratamento seria outro? Eles sairiam – como aconteceu com
o povo negro --, ou permaneceriam no local? Esses pequenos focos de resistência
ainda encontram ressonância na nossa memória.
IGREJA CATÓLICA E MARABAIXO
Com a chegada dos primeiros
missionários do Pontifico Instituto das Missões Estrangeiras (PIME) em 1948, a
cultura negra local sofreu mais ameaças, e desta vez bem profundas. Se alguém
tiver oportunidade, leia a obra de Fernando Canto, ‘A Água Benta e o Diabo’. Para os missionários, o Marabaixo era uma
manifestação popular profana e imoral, que devia ser combatida. Antes da
represália da Igreja Católica, o Marabaixo era realizado na frente da Igreja de
São de José de Macapá. Chegou um tempo em que os padres não deixavam os marabaixeiros
entrarem na Igreja. E um dos episódios que marcou a história dessa relação foi a
quebra da coroa do Divino Espirito Santo pelo vigário belga padre Júlio Maria
Lombaerd, que na época causou grande revolta nos marabaixeiros e fiéis do
santo.
Para efetivar a repressão,
em 1950 o primeiro bispo de Macapá D. Aristides Piróvano, condenou as festas
religiosas populares através de uma carta pastoral. E ainda, criaram um periódico
que massificava as ideias cristãs e condenava todas as demais formas de manifestações
religiosas que contrariassem a ética eclesiástica. Mesmo assim, Julião Ramos,
que fazia parte da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, continuou a praticar
e a realizar as festas de Marabaixo, e por sua resistência, a Igreja decidiu
expulsá-lo da Irmandade.
As ações da Igreja Católica
provocaram uma serie de mudanças na organização do próprio CICLO DO MARABAIXO.
A festa passou a ser realizada na casa dos festeiros; a capoeira (“carioca”) ,
que era jogada na frente da Igreja de São José, deixou de existir, e o local em
que a murta era apanhada foi modificado.
As relações e aproximações
da Igreja Católica com o Marabaixo só começaram a mudar para melhor, a partir
do momento em que as igrejas passaram a ser comandadas por padres amapaenses,
como os padres Aldenor Benjamim e Paulo Roberto Matias. Inclusive se tornou tradição,
na Semana da Consciencia Negra, o padre Paulo Matias celebrar, todos os anos, a
‘Missa do Quilombo’, com a presença de sacerdotes dos cultos afros.
Mas, anos depois, os
marabaixeiros da Associação Raimundo Ladislau tiveram um conflito com um padre italiano
da Igreja São Benedito. Segundo a marabaixeira Daniela Ramos, eles tiveram que
resistir para manter as tradições e realizar a festa, que foi fortemente
combatida pelo padre italiano do Pime, da ala conservadora da Igreja, que não
queria que as imagens símbolos do Marabaixo fossem para o templo de São
Benedito, um santo de nacionalidade negra. A comunidade laguinhense se
revoltou, o assunto foi bastante divulgado na Imprensa, e o bispo, ouvindo os
apelos da população, trocou o vigário da igreja, e a paz voltou a reina “nos
campos do Laguinho”.
Novamente, neste ano, o grupo de
Marabaixo teve outra surpresa: o vigário da Paróquia de Jesus de Nazaré – e só
podia ser italiano --, resolveu proibir o acesso de brincantes com bandeiras,
imagens, indumentárias e adereços, no interior do templo. Houve novas
manifestações, e estamos esperando o pronunciamento do bispo, para deliberar se ainda existe a harmonia entre
a Igreja e os cultos afros, pois o próprio Papa Francisco se manifestou, em
várias ocasiões, de que as igrejas não podem proibir acessos de pessoas, seja
de quais culturas forem, para seus sacrifícios e manifestações, já que a
conversão e as “prestações de conta” com Deus serão sempre individuais, e não
cabe, portanto, a uma autoridade eclesiástica a censura de pessoas nos templos.
Como vimos, o Estado e a Igreja tomaram decisões no passado, que
impactaram a comunidade negra desde a década de 40, mas a resistência dos
queridos e amados afrodescendentes forçou ambas autoridades a repensarem seus
pontos de vista. Assim, surgiram entidades como a União dos Negros do Amapá (UMA),
o Centro de Cultura Negra, a secretaria estadual de Governo que cuida da
integração dos afrodescendentes (Seafro) e o Instituto Municipal de Promoção da
Igualdade Racial (Improir), como instrumentos de promoção, interação e
manutenção da cultura. Por meio da Assembleia Legislativa do Estado, e com a
sanção governamental, já temos, em nosso calendário cultural, o 16 de junho como Dia Estadual do Marabaixo (Lei
Estadual nº 049/2010).
Atualmente, a festa do Ciclo
do Marabaixo em Macapá, realizada nos bairros do Laguinho e Favela, representa
uma forte manifestação cultural dos negros amapaenses. Esperamos que nossos
queridos e amados ancestrais, assim como nossos afrodescendentes atuais, possam
exercer livremente suas manifestações culturais, e recebam aprovação pacífica e
carinhosa da população, que tem, no seu maior conteúdo étnico, a presença afro.
Texto: Edgar Rodrigues
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