Era noite de 6 de Janeiro de 1981, quando o barco
ribeirinho Novo Amapá naufragou na foz do rio Cajari, próximo ao município de
Monte Dourado (PA), levando às águas mais de seiscentas pessoas. Trezentas
destas perderam a vida e dezenas passaram horas de pânico e desespero, imersas
na água e na escuridão.
A embarcação partiu do Porto de Santana com mais de
600 passageiros e quase um tonelada de carga comercial. Seu destino era o
município interiorano de Monte Dourado, com escala em Laranjal do Jari. Como as
viagens anteriores duravam em torno de um dia e meio, seu proprietário havia
reformado-lhe, instalando um motor hidráulico a mais, o que facilitaria na
velocidade da embarcação.
A lista de despacho, segundo a Capitania dos Portos na
época, tinha registrado cerca de 150 pessoas licenciadas pelo despachante
Osvaldo Nazaré Colares. Mas na embarcação havia mais de 600 vidas. O
despachante (falecido em abril de 2001, vítima de Dengue Hemorrágica) afirmou
que só foi informado da tal lista após já ter partido há certas horas e que a
lista foi deixada sob sua mesa, quando ele estava ausente.
O comandante responsável pela viagem, Manoel Alvanir da
Conceição Pinto, seguiu todas as instruções necessárias do proprietário, sobre
a viagem. O proprietário era Alexandre Góes da Silva, que teve seu corpo
encontrado no camarote da embarcação. Seu único comentário (Alvanir) volta-se para o comando do barco.
Segundo versões de sobreviventes na época, a responsabilidade pela cabine de
comando estava nas mãos inexperientes de um garoto. "Isso é mentira. Havia
sim um garoto ao meu lado na cabine de comando, mas não deixei por nenhum
momento ele pegar na direção do barco, como andaram dizendo", afirmou o
ex-comandante que fez, da que seria uma simples viagem fluvial, o maior
naufrágio da navegação brasileira.
"FOI INEVITÁVEL"
Segundo a lista da Capitania dos Portos do extinto
Território Federal do Amapá, cerca de 650 pessoas embarcaram no Novo Amapá e
menos de 180 puderam sobreviver. "Muita gente diz que foram duzentos e
poucas pessoas que sobreviveram. Isto não é verdade", contradiz dona Creuza
Marques dos Reis, sobrevivente hoje com 65 anos. Dona Creuza embarcou com sua
filha e a neta. Somente ela e a neta de um ano e meio sobreviveram. Atualmente
morando em Santana, tem como sustento um estabelecimento comercial
diversificado.
Sobrevivente Armando da Silva Batista contou, em depoimento, que uma das
causas das inúmeras mortes terem ocorrido foi o auxílio dos salva-vidas.
"Essas pessoas que pegaram os salva-vidas morreram quase todas porque
dormiram e aquilo atrapalhou; não sabiam o que estava acontecendo", disse.
Funcionário de empresa que vendia utensílios de cozinha
para toda a região do Amapá, Armando viajava freqüentemente em época de
pagamentos, para fazer cobranças, acompanhado do colega Edson. Momentos antes
da tragédia ambos haviam se separado. "Como a área das redes estava muito
quente, disse pro meu colega que ia pro andar de cima e quem sabe só retornar
de manhã", relatou.
Ao ser perguntado sobre o momento em que o barco tombou,
Armando contou com detalhes: "Levei uns 15 minutos pra chegar na cabine.
Quando cheguei lá, ele (comandante) mandou servir um café pra mim, pro Roberto
(amigo) e duas meninas do Jari. Nos 15 minutos que cheguei lá, o barco deu um
tombo para um lado e um tombo para o outro. Eu ainda perguntei pro Alvanir:
'Alvanir, isso é maresia?'. Ele disse: 'Rapaz, por incrível que pareça, nessa
região não dá maresia'. Quando ele terminou de falar, o barco tombou de uma
vez. Foi como uma virada de carro. Inevitável."
Buscando até mesmo com precisão a hora em que o barco
tombou, foi o que aconteceu com o sobrevivente Enoque Magave da Silva, minutos antes do trágico tombo, conseguiu ver as
horas em seu relógio de pulso: eram 20h45min. "Eu estava com relógio no
braço e vi as horas normalmente. Quando de repente senti o barco virar
lentamente. Como estava deitado numa rede de frente para uma senhora, fui um
dos primeiros a parar logo dentro d'água na hora do tombo", contou Magave,
que no mesmo ano do desastre casou-se com sua atual esposa e ingressou na
Polícia Militar.
Kátia Isabel Andrade, sobrevivente, era amiga pessoal da tripulação, principalmente do comandante Manoel
Alvanir e do proprietário Alexandre Góes da Silva. "Tinha feito outras
viagens no barco e já conhecia o pessoal", disse Kátia, que ironizou a
tragédia momentos antes de acontecer, na hora da jantar. "Eu terminei de jantar
e disse pro pessoal na mesa que ia me banhar e minhas colegas disseram: 'Tu vai
morrer', daí eu falei: 'Não vou não. Se não morrer agora, não morro mais'. Daí
fui pro banheiro, tomei banho e voltei pro camarote (...)". Segundo Kátia,
foi tão rápida a virada do barco que ela só percebeu o que estava se passando
quando as luzes do camarote se apagaram e que água circulava ao seu redor.
O DESASTRE
Após partir do Porto de Santana por volta das 14hs do dia 6
de Janeiro de 1981, a embarcação tombou aproximadamente às 21hs. A notícia da
tragédia chegou à capital no dia seguinte, através de dois sobreviventes.
A verdadeira dimensão do desastre iniciou quando a imprensa
local divulgou a lista de despacho na qual constava que somente 146 pessoas
haviam sido liberadas para viajar, enquanto que na embarcação estiveram
presentes mais de seiscentas pessoas.
Em menos de 48 horas toda a imprensa nacional voltou-se
para o então Território Federal do Amapá, acompanhando todas as informações
sobre a tragédia do Cajari. O jornal norte-americano New York Times do dia 10
de Janeiro publicou matéria na primeira página sob o título "Tragédia na
Amazônia: 282 mortos".
CULPADOS
Segundo alguns sobreviventes, a inexperiência de um garoto
na cabine de comando pode ter sido a causa do desastre. O garoto que muitos se
referem pode ser José Roberto da Silva Pinto, hoje com 32 anos e que há pouco
tempo trabalhava no cemitério onde foram enterradas as vítimas do naufrágio.
"Isso é mentira dizerem que foi um garoto a causa principal da tragédia",
disse José Roberto, criticando certas afirmações ditas na época pela imprensa.
Roberto era amigo da tripulação há tempos e, vez por outra,
viajava no Novo Amapá a pedido do proprietário Alexandre Góes, que comandava a
embarcação e também era dono de um estabelecimento comercial no município de
Santana, onde Roberto já trabalhara. "Antes mesmo de começar a viajar no
Novo Amapá, eu trabalhava num bar de que ele era dono", disse Roberto.
Alguns sobreviventes insinuaram que um banco de areia pode
ter sido uma das principais causas do trágico tombo na foz do Cajari. Mas
segundo certas informações que se encontram em livros geográficos e
hidrográficos da época, o nível do rio Cajari era bastante alto para levá-lo a
inclinar-se lentamente para as águas.
Outra grande causa - e a mais conhecida até hoje - vem a
ser a superlotação da embarcação. Mas, pergunta-se: se a superlotação possa ter
sido a causa do naufrágio do barco Novo Amapá, por que não tombou momentos após
deixar o Porto de Santana, sabendo que havia uma grande quantidade de
passageiros à bordo?
O Governo Territorial, que tinha como chefe executivo o
comandante Annibal Barcellos, buscou auxiliar moralmente, mas a ajuda foi
carente, tanto que a verba enviada do Governo federal para ser utilizada no
resgate dos sobreviventes e servir parcialmente na indenização dos parentes das
vítimas era de 25 milhões de cruzeiros (hoje em torno de 10 milhões), mas
somente cinco mil cruzeiros foram usados, no que se levou a crer num desvio,
assim divulgado pelo Jornal Amapá Urgente de 12 de Janeiro de 1981.
O fato entrou em processo jurídico um ano depois quando o
advogado Pedro Petcov assumiu o caso, rolando pela Justiça federal por quase 15
anos. Após a morte do advogado em 1996, o caso foi arquivado sem ter alcançado
o principal objetivo: indenizar os familiares das vítimas mortas e os
sobreviventes. "Todos ainda têm uma esperança de algum dia receber algo da
justiça pela aquela noite trágica", disse o sobrevivente Haroldo Fernandes
de Souza, hoje com 44 anos, atual funcionário do Tribunal de Contas do Estado,
na esperança de receber algum dia algo que compense a fatídica noite de 6 de
Janeiro de 1981.
Nenhum comentário:
Postar um comentário